Entrada Gratuita
SESI Museu de Artes e Ofícios
ILÊ DE MONA* – exposição de Bárbara Macedo
“A gente precisa se inventar. Segunda fui pro barracão fazer função de Exu e fiquei até 06:30 da manhã de terça. Seis travestis juntas. Contando as verdades sobre todas as nossas mentiras. Debochando de todas as mentiras que já contamos. Menosprezando a verdade que nos violenta”.
A fala acima, de Bárbara Macedo, é retrato de como funciona o universo das “verdades” instituídas em relação às monas (do tipo “ela não pode ser tratada no feminino”, “ela é uma fraude pra ciência” e por aí vai). Mas o que a artista relata me leva também a pensar em certas divisões entre o falso e o verdadeiro, em nossa mania, por exemplo, de colocar o mítico de um lado e a coisa real, a “coisa séria”, de outro. É a ideia de que a filosofia nasce quando ultrapassamos o mito. Katiúscia Ribeiro, por sua vez, vem lembrar que no pensamento africano os mitos são formas de entendimento de tudo que há e que, contrariamente à tradição ocidental “onde o amanhã supera o ontem”, eles “nos convidam a conversar com o tempo”. Nessa trilha de conhecimento e diálogo com o tempo, seguem as festas de Exu Tranca Ruas e da Pombagira Yasmin, registradas por Babi nas fotos de “Existências Contínuas”. Nessas ocasiões todas as travestis convertem-se numa única existência: trata-se do ancestral que passa a habitá-las e a vesti-las, como algo “postiço” que as abraça, uma “prótese” pra além das que possam ter – as unhas falsas, o megahair, o silicone. Nas festas todas recebem essa “existência postiça”, segundo Bárbara, uma espécie de veste espiritual com que se conectam umas às outras e ao mundo dos mortos. Esses, aliás, são presenças reais ali, dando sentido à vida. Na noção de verdade do Ocidente, no entanto, os mortos costumam ser meras lembranças do passado ou puro esquecimento do que se acabou. Cá pra nós, há muito a aprender com o que Babi nos oferece, essa “prótese mítica”.
Ainda me vem à cabeça agora que existe um jeito debochadamente gentil de enxergarmos a arte como farsa quando dizemos: “ah, mas isso é invenção, é só um quadro, só um filme, um conto”. A arte, assim, parece divertir e enfeitar a vida, é tão dócil e ficcional que temos a impressão de que ela nunca criou nossas convicções sobre beleza, nunca moldou as caras de santos ou de deuses, nunca forjou nossos medos e nem consolidou, ao representar o real, a própria noção de realidade que temos. Nada disso. A arte é, de fato, uma mentira poderosíssima. Já foi arma de faraós, imperadores. Por que não ser, então, um instrumento travesti? É o que acontece na reconfiguração do mundo que Bárbara fabrica em “Oráculo das Ancestravas”. No conjunto, ao invés de nos mostrar as reportagens sobre violências a que as monas são expostas e que cremos ser o único espelho possível do cotidiano, a artista nos apresenta, de maneira alegre (e a alegria é uma força trava!), o sucesso e as realizações dessa população. A série vem em faixas de rua, das que celebram uma formatura ou anunciam o sumiço de um poodle. Nesse aspecto o suporte em si é um apelo à realidade mais corriqueira e palpável, dando substância à mentira mais realista, mais inauguradora de verdade que se possa imaginar.
Pensando melhor, o termo mentira não funciona bem neste texto. O que Babi faz é macumba, vocábulo que podemos traduzir como “reunião de poetas feiticeiros”. Bárbara Macedo, ao reconstruir a verdade como boa feiticeira que é, convida à reinvenção de nossa caminhada no planeta. Ela nos convida a aquendar, palavra incrível da língua travesti e que vem do quimbundo, com significado de caminhar. Nem mentira nem verdade, afinal. Arte pra viver, porque viver é aquendar.
Marta Neves
*No pajubá “ilê de mona” pode ser entendido como “terreiro de travesti”.
Museu de Artes e Ofícios
Abertura 17.11.2023 de 19h às 22h
Visitação de 18.11.23 a 27.01.2024
Terça a Sexta de 11h às 16h
Sábado de 09h às 17h
Obs.: o Museu não estará aberto entre os dias 25 de dezembro 2023 e 08 de janeiro de 2024.
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